domingo, 22 de abril de 2012

AM BARCELOS APROVA, POR PROPOSTA DO BLOCO, MOÇÃO SOBRE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DE EXTINÇÃO/FUSÃO DE FREGUESIAS

M O Ç Ã O

Em defesa da Autonomia Local

I - A Proposta de Lei n.º 44/XII originou já um Decreto da Assembleia da República, aprovado em reunião plenária da Assembleia da República em 13 de Abril de 2012.

O resultado final de tal iniciativa legislativa traduz-se numa drástica redução do número de freguesias, sem qualquer critério que não o critério quantitativo, e com graves insuficiências na participação das populações e autarquias afetadas.

É necessário entender a autonomia local como algo anterior e transcendente à própria Constituição, que resulta da própria essência das relações humanas e dos fenómenos de socialização.

É evidente que o conceito de autonomia local é dinâmico, e sujeito a variações doutrinárias e ideológicas. No entanto ele comporta sempre o reconhecimento do direito de uma população que habita sedentariamente um território de decidir sobre aspetos particulares da vida da respetiva comunidade, pese embora integrada numa comunidade política mais vasta.

Assim, teremos de enquadrar como núcleo fundamental da autonomia local o autogoverno das comunidades, compreendendo a eleição dos seus órgãos de decisão, e garantindo-se às comunidades os meios para a satisfação das suas necessidades.

Ainda que por via do direito positivo se possa atentar a existência da autonomia local, num prisma formal, o exercício do conteúdo mesma não deixará materialmente de existir, consistindo na decisão dos vizinhos, à margem do ius imperi, em espaços da vida comunitária que fiquem a descoberto da intervenção do Estado, por desconhecimento ou omissão.

Nesse vazio, os membros da comunidade tomarão sempre decisões coletivas para a satisfação das suas necessidades, tomando decisões, escolhendo executores e angariando os respetivos meios, ainda que não disponham de enquadramento legal para o efeito.

Também resulta evidente que o papel da autonomia local é variável, não só por condicionantes relacionadas com opções políticas do constituinte e do legislador, mas também em função da evolução dos tempos e das necessidades das comunidades.

Por isso, não podemos entender o desenho das competências e funcionamento das manifestações formais da autonomia local como um modelo pétreo. Temos antes de encarar a autonomia local como uma realidade dinâmica, não esquecendo o seu núcleo fundamental.

O mesmo se diga quanto à delimitação territorial, em concreto, das várias formas de manifestação da autonomia local. Cada comunidade local tem hoje o seu território definido, e mesmo quando não o tem formalmente, ele resulta de convenções ancestrais, e é de todos os que interagem no seio da comunidade local respetiva, ou com ela, conhecido.

Mais, tal território resultou de dinâmicas sociais, como sejam a residência dos utilizadores ou possuidores dos próprios terrenos. E assim se foram construindo, anteriormente a qualquer disposição constitucional ou legislativa, os limites de muitas manifestações territoriais de autonomia local.

Foi um processo longo, traduzindo-se, muitas vezes, na sedimentação se séculos de vivência. Por isso, também a delimitação territorial das manifestações da autonomia local, gozam de uma legitimidade que transcende a construção constitucional e legal.

Note-se, que também esta realidade é dinâmica, considerando as variações demográficas, sociais e económicas que se verifiquem. Os mapas de divisão administrativa não podem ser, desta forma, estanques, e devem refletir a evolução dos tempos.

As identidades das comunidades locais, e o sentimento de pertença dos que a integram, são determinantes em qualquer alteração à organização e delimitação das manifestações de autonomia local. Também porque muitas vezes são pré-existentes à própria realidade jurídico-constitucional que pretenda proceder a alterações.

É esta a razão do carácter conturbado de qualquer reforma territorial, ou diminuição de competências das comunidades locais que seja feita por via não consensual. É que de uma forma generalizada, as comunidades afetadas sentem-se mais legitimadas nas suas pretensões do que o poder constitucionalmente legítimo que as pretenda impor.

E é por isto que entendemos que qualquer decisão que implique a criação, extinção, fusão e modificação territorial de autarquias locais deve ser objeto de ampla e solene participação dos cidadãos das autarquias afetadas, que devem ser consultados por via referendária. É esta, aliás, a solução do artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local, à qual Portugal aderiu e ratificou, vigorando na nossa ordem jurídica.



II - Apesar de cada categoria de autarquia local conter um âmbito territorial mais ou menos vasto, compreendendo no seu território outras autarquias locais de diferente categoria ou compreendendo-se o seu território no território de autarquias locais de diferente categoria, a Constituição da República Portuguesa não estabelece nenhuma relação hierárquica entre elas.

É esse o entendimento de Jorge Miranda, que em anotação ao artigo 236.º da Constituição da República Portuguesa é perentório ao afirmar “As autarquias de grau superior não dispõem de nenhum poder de direção, superintendência ou tutela relativamente às autarquias de grau inferior, sem embargo da necessária cooperação decorrente da natureza das coisas e da escassez de recursos”, mais afirmando que “Nem os concelhos são simples agregados de freguesias, nem as regiões administrativas são simples agregados de municípios.”, ressalvando que existem formas de articulação orgânica, designadamente a participação de membros pertencentes ou designados por órgãos de autarquias de grau inferior em órgãos de autarquias de grau superior[1].

Em igual sentido, Diogo Freitas do Amaral sublinha que “… ao falarmos de autarquias que existem acima ou abaixo do município queremos referir-nos à área maior ou menor a que respeitam, não pretendendo de modo algum inculcar que entre as autarquias de grau diferente haja qualquer vínculo de supremacia ou subordinação – não há hierarquia entre autarquias locais; a sobreposição de algumas em relação a outras não afeta a independência de cada uma”[2].

Acompanhamos ainda António Cândido de Oliveira, na sua feliz formulação a respeito do tratamento constitucional da freguesia: “a freguesia que tem, a nível constitucional, a mesma dignidade que o município”[3].

Desta forma, o artigo 10.º, n.º 1 da Proposta de Lei n.º 44/XII, ao conferir exclusivamente às assembleias municipais a competência para deliberar sobre a reorganização do mapa das freguesias compreendidas no território do respetivo município, excluindo as assembleias de freguesia, cuja intervenção é facultativa (artigo 10.º, n.º 3 da Proposta de Lei n.º 44/XII), viola o artigo 6.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

O artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa estabelece que o Estado respeita na sua organização e funcionamento os princípios da subsidiariedade e da autonomia das autarquias locais.

O Princípio da Subsidiariedade, na formulação de Gomes Canotilho[4], “as comunidades ou esquemas organizatório-políticos superiores só deverão assumir as funções que as comunidades mais pequenas não podem cumprir da mesma forma ou de forma mais eficiente”.

Com efeito, esta subalternização do papel das freguesias põe em causa, de forma intolerável, o princípio da subsidiariedade, na medida em que, conferindo-se competências a autarquias locais de participação no processo de reorganização territorial das autarquias locais, a proximidade do centro de decisão às pessoas afetadas, exige uma intervenção efetiva das freguesias.

Sempre se poderá dizer que o sucesso da reorganização territorial será melhor assegurado pelas assembleias municipais que pelas assembleias de freguesia, na medida em que aquelas farão a sua proposta de forma integrada, permitindo um melhor desenho do novo mapa autárquico.

Mas tal argumento falece de razão. A competência para a reforma territorial das autarquias locais é matéria que constitui reserva de lei (artigo 236.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa), sendo a competência legislativa exclusiva da Assembleia da República (artigo 164.º, alínea n), sem prejuízo das competências específicas das regiões autónomas, pelo que não será às assembleias municipais que competirá, a final, a decisão sobre esta matéria. Por isso, o modelo proposto, ao estabelecer a competência das assembleias municipais para a pronúncia relativamente à reforma territorial do mapa das freguesias, não nos permite concluir que tal competência seja melhor prosseguida exclusivamente pela assembleia municipal, do que seria com a intervenção obrigatória das assembleias de freguesia, que representam as autarquias e populações diretamente afetadas.

A verdade é que está em causa a pronúncia sobre a subsistência de autarquias locais concretamente consideradas com a ablação da competência para a pronúncia aos órgãos dessas autarquias, em favor do órgão de uma autarquia de grau superior, que pese embora representar e compreender as populações afetadas, tem um âmbito territorial e populacional mais vasto, não permitirá uma representação tão fiel da vontade das populações afetadas.

De igual forma, é posto em causa de forma intolerável o princípio da autonomia das autarquias locais, na medida em que pese embora tal competência de pronúncia estar cometida a um órgão de autarquia local, a verdade é que esse órgão é de uma autarquia local de grau diverso das autarquias locais afetadas. Nessa medida, e considerando a já demonstrada inexistência de hierarquias entre autarquias locais, a autonomia das freguesias é posta, de forma inequívoca, em crise.

Com efeito, a relevância dada à pronúncia da assembleia municipal na conformação do número e limites das freguesias concretamente consideradas na área do respetivo município (artigo 10.º, n.º 1 da Proposta de Lei n.º 44/XII), em relação à competência meramente instrumental a essa pronúncia (e de caracter facultativo) conferida às freguesias (artigo 10.º, n.º 3 da Proposta de Lei n.º 44/XII), traduz-se numa subalternização clara das freguesias e no desrespeito da autonomia local das freguesias.

Assim, o artigo 11.º, n.º 1 do Decreto da Assembleia da República, resultante da Proposta de Lei n.º 44/XII é materialmente inconstitucional por violação do artigo 6.º da Constituição da República Portuguesa.
III - Agora importa verificar a conformidade dos artigos 11.º, n.º 1, 10.º, n.º 4, 14.º, n.º 1, alínea c) e 15.º, n.º 1 e n.º 3, 16.º e 17.º do Decreto da Assembleia da República resultante da Proposta de Lei n.º 44/XII quando interpretados no sentido de tornarem facultativa a audição das freguesias relativamente à sua extinção, fusão ou modificação territorial.

O artigo 249.º da Constituição da República Portuguesa impõe que criação e extinção de municípios, bem como para a alteração da respetiva área, seja feita por lei, precedida de consulta aos órgãos das autarquias abrangidas.
Estamos pois, perante uma garantia constitucional, que limita a discricionariedade do legislador.

Por autarquias abrangidas devemos entender as freguesias e municípios[5] e, até mesmo as regiões administrativas, ou outras autarquias criadas nos e termos do artigo 236.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, cujo território seja alterado pelas modificações territoriais em causa.

Por outro lado, a Carta Europeia de Autonomia Local, vem colmatar a falta de abrangência desta garantia a todas as autarquias locais e estabelece, no seu artigo 4.º, n.º 6, que As autarquias locais devem ser consultadas, na medida do possível, em tempo útil e de modo adequado, durante o processo de planificação e decisão relativamente a todas as questões que diretamente lhes interessem”.

Já o artigo 5.º da Carta Europeia de Autonomia Local estabelece a obrigatoriedade de audição das autarquias locais interessadas relativamente a qualquer alteração dos limites territoriais locais, eventualmente por via de referendo, nos casos em que a lei o permita.

Assim, e quanto aos artigos 16.º e 17.º do Decreto da Assembleia da República resultante da Proposta de Lei n.º 44/XII, quando sejam interpretados no sentido de:

i - Não serem obrigatoriamente consultadas as freguesias que sejam abrangidas pela fusão de municípios, previstas no artigo 16.º;

ii – Não serem obrigatoriamente consultadas as freguesias que sejam abrangidas pelas modificações territoriais, seja pela alteração do município a que pertencem, seja pela alteração do seu território, previstas no artigo 17.º,

São materialmente inconstitucionais por violação do artigo 249.º da Constituição da República Portuguesa e ainda por violação do artigo 4.º n.º 6 e do artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local, nos termos do artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

No entanto, deve observar-se que se encontra ainda em vigor a Lei n.º 142/85, de 18 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 124/97, de 27 de Novembro, pela Lei n.º 32/98, de 18 de Julho e pela Lei n.º 48/99 de 16 de Junho, cuja revogação não consta da Proposta de Lei n.º 44/XII, e que relativamente à criação de novos municípios prevê a audição das assembleias de freguesia a integrar no novo município (artigo 5.º, n.º 1), e os municípios em que se integrem as freguesias a integrar no novo município (artigo 5.º, n.º 2). Nestas situações, não se verificará a supra citada inconstitucionalidade, considerando a audição das autarquias abrangidas. Isto dito, …

A garantia constitucional de audição prévia prevista no artigo 249.º da Constituição da República Portuguesa apenas abrange as vicissitudes relativas aos Municípios. Será, porventura inaplicável às vicissitudes das restantes autarquias locais?

A inexistência de um preceito deste género para as alterações relativas às freguesias, regiões administrativas e outras autarquias locais, poderia fazer crer na desnecessidade constitucional de tal audiência prévia, que apenas poderia ser alcançada por via da interpretação extensiva do artigo 249.º da Constituição da República Portuguesa.

Mas tal não se mostra necessário, considerando o disposto nos artigos 4.º, n.º 6 e 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local supracitados.

Assim, é forçoso concluir que, pelo menos quanto à alteração dos respetivos limites territoriais, todas as autarquias locais gozam desta garantia de audição prévia, que é assegurada e estendida para além da garantia constitucional dada aos municípios, às restantes categorias de autarquias locais.

Por outro lado, a pronúncia dos órgãos das freguesias relativamente a proposta que determine a sua extinção, fusão ou modificação territorial, deve ser permitida em tempo útil, o que não é assegurado pelos artigos 11.º, n.º 1 e e 14.º n.º 2 da Proposta de Lei n.º 44/XII, quanto a este último preceito por inviabilizar a audição dos órgãos das freguesias quando inexista pronuncia da assembleia municipal.

Nestes termos, os artigos 11.º, n.º 1, 10.º, n.º 4, 14.º, n.º 1, alínea c), 14.º, n.º 2 e 15.º, n.º 1 e n.º 3, da Proposta de Lei n.º 44/XII quando interpretados no sentido de inviabilizarem a audição das freguesias relativamente à sua extinção, fusão ou modificação territorial são inconstitucionais, pois violam do artigo 4.º n.º 6 e do artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local, e, consequentemente, violam o artigo 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.





ASSIM, a Assembleia Municipal de Barcelos, reunida em Sessão Ordinária de 20 de Abril de 2012, delibera:



1 – Repudiar o Decreto da Assembleia da República originado pela Proposta de Lei n.º 44/XII.



2 – Defender a audição das populações sobre a modificação, extinção, fusão e alteração territorial das autarquias locais, através de referendo, dando cumprimento ao artigo 5.º da Carta Europeia da Autonomia Local.



3 – Solicitar a Sua Excelência, o Senhor Presidente da República que suscite a fiscalização preventiva da constitucionalidade, nos termos aqui explanados, das normas apontadas do Decreto da Assembleia da República originado pela Proposta de Lei n.º 44/XII, nos termos do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa.



4 – Solicitar a Sua Excelência, o Senhor Presidente da República que, sem prejuízo da fiscalização preventiva da constitucionalidade peticionada, exerça o veto político relativamente ao Decreto da Assembleia da República originado pela Proposta de Lei n.º 44/XII, nos termos do artigo 136.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.



5 – Aprovar a presente Moção.





6 – Remeter, com urgência, a presente Moção a Suas Excelências o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, o Ministro-Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, aos Grupos Parlamentares da Assembleia da República, à Associação Nacional de Municípios Portugueses e à ANAFRE.



Barcelos, 20 de Abril de 2012

Os Deputados Municipais do Bloco de Esquerda

José Maria Cardoso

Rosa Viana

Mário Costa



[1] in Miranda, Jorge e Medeiros, Rui (Org.) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, páginas 451.
[2] In Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 3ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, páginas 497 e 498.
[3] In Oliveira, António Cândido de, A democracia local (aspectos jurídicos), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, página 20.
[4] In Canotilho, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, páginas 362 e 363.
[5] Neste sentido Jorge Miranda e Joana Colaço em anotação ao artigo 249.º da Constituição da República Portuguesa in Miranda, Jorge e Medeiros, Rui (Org.) Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, 2007, Coimbra, Coimbra Editora, páginas 519 e 520.