segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Memorando da Comissão Nacional Autárquica do BE sobre o "Documento Verde"

A Comissão Nacional Autárquica, eleita na Mesa Nacional de 24 de Setembro, realizou a sua primeira reunião em 8 de Outubro de 2011, na sede nacional.
O ponto principal da Ordem de Trabalhos foi a análise e o posicionamento do Bloco face ao Documento Verde do governo sobre a Reforma da Administração Local que será justamente o tema das Jornadas Autárquicas 2001, marcadas para 26 de Novembro, em Almada.
Este debate envolve, antes de mais, um problema político da maior importância e é também uma questão sensível de táctica política, com reflexos óbvios na intervenção parlamentar, entre outras. Este Memorando pretende ser uma ferramenta para a necessária clarificação do BE sobre a Reforma Administrativa.

Nesta resenha de análise e propostas considerámos os quatro eixos do Documento Verde:

Eixo 1 – Sector Empresarial Local
Eixo 2 – Organização do Território
Eixo 3 – Gestão Municipal Intermunicipal e Financiamento
Eixo 4 – Democracia Local
Numa apreciação global às propostas do Documento Verde, a CN Autárquica é unânime em considerar que estamos perante o maior ataque de sempre à democracia local, nascida no 25 de Abril, face ao qual não há lugar para ingenuidades.
O acordo com a troika não passa de um pretexto para a aplicação dos velhos projectos do PS e PSD de alteração das leis eleitorais autárquicas, reforçando o bipartidarismo, a centralização do poder e a limitação drástica da autonomia do poder local, consagrada na Constituição.
Hoje, estes projectos procuram manipular os sentimentos populares face à crise: o combate ao despesismo e aos excessos das empresas municipais; a ideia mil vezes repetida de que “há políticos e órgãos a mais”, usada para restringir o pluralismo e diminuir o controlo democrático dos cidadãos e das oposições, facilitando a corrupção.
Significativamente, o lançamento do Documento Verde foi antecedido pela extinção da IGAL, de forma quase silenciosa, não fora a corajosa carta do Inspector-Geral prontamente censurada pelo ministro Miguel Relvas, pai e “alma negra” deste projecto governamental.
Na formulação de alternativas aos planos da direita e do PS, precisamos de combinar a clareza política na defesa e aprofundamento da democracia local com habilidade táctica para reverter os argumentos dos adversários e expor a natureza antidemocrática das suas propostas. De pouco serviria a postura de mera “defesa do que existe” que nos arredaria do debate político, sendo facilmente catalogada de imobilista e colada à posição do PCP.
Com estes considerandos, expomos resumidamente as opções que se nos colocam face a cada um dos quatro eixos em debate.
Eixo 1 – Sector Empresarial Local - SEL
Nada nos move contra o objectivo expresso no Documento Verde de redução significativa do actual número de entidades que compõem o SEL, por extinção e/ou fusão, acautelados que estejam o princípio da autonomia local e os direitos dos trabalhadores.
Aliás, a anterior Comissão Nacional Autárquica havia já elaborado um ante-projecto de Lei que não chegou a ser apresentado no parlamento. Defendia-se então a extinção das empresas que acumulassem prejuízos sucessivos e contas não consolidadas pelos municípios.

Apontava-se também para a responsabilização dos eleitos e das autarquias, em caso de incumprimento das disposições relativas à obrigatoriedade de extinção de empresas integradas no sector empresarial local.
Em relação às EM’s que subsistam, devemos defender o aumento de competências das Assembleias Municipais quanto ao SEL, designadamente na aprovação dos respectivos planos e contas, aumentando desta forma o controlo democrático sobre o seu funcionamento.
Ainda antes da apresentação do Documento Verde, o governo PSD/CDS apresentou a Proposta de Lei 11/XII que visa, entre outras matérias, suspender a criação de novas empresas do SEL. Mas o governo pretendeu reservar-se o direito de “furar” esta suspensão:
“Em situações excepcionais e devidamente fundamentadas, os membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração local podem autorizar conjuntamente, por despacho publicado em 2.ª Série do Diário da República e sob proposta do organismo, serviço ou entidade que requer tal excepção, a criação de empresas ou a aquisição de participações em sociedades comerciais” – artigo 4.º, n.º 4 da Proposta de Lei.

Esta disposição é inaceitável, pois representa uma compressão à autonomia local e deixa ampla margem de discricionariedade ao Governo para exercer uma tutela arbitrária sobre as autarquias locais, servindo interesses clientelares. Além disso, tal preceito viola artigo 242.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Eixo 2 – Organização do Território

Em matéria de reorganização territorial, o Governo limita-se a tratar por agora das freguesias, remetendo os municípios para fusões voluntárias, a ser incentivadas, e adiando para o futuro o seu enquadramento legal. Esta solução não responde sequer ao objectivo enunciado, tanto mais que o grosso da despesa e das competências repousa nos municípios.
É sabido que as 4259 freguesias existentes representam apenas 0,13% da despesa no OE. Mas a nossa argumentação não deve ser economicista. Em muitas regiões do país, em especial no interior, depois do encerramento da escola, do posto médico, dos CTT e da GNR, a Junta de Freguesia resta como único elemento simbólico da presença do Estado – e também material, pois funciona como balcão de alguns serviços extintos, nomeadamente na área social.
Não recusando por princípio uma reorganização do mapa territorial, exigimos coerência e o respeito de princípios democráticos, nomeadamente:
- Os critérios demográficos e de área geográfica mínima para a existência de freguesias devem considerar variáveis como a orografia, a rede de transportes públicos e a concentração ou dispersão do povoamento, reduzindo os critérios neste último caso;

- A extinção, fusão ou agregação voluntária de freguesias /municípios exigirá parecer positivo do respectivo órgão deliberativo – Assembleia de Freguesia ou Municipal, confirmado se necessário por referendo local. Para viabilizar esta possibilidade, deverá ser regulamentada a convocação de referendo local por iniciativa de cidadãos.

Eixo 3 – Gestão Municipal Intermunicipal e Financiamento
Neste eixo tem particular relevância o papel que o governo pretende atribuir às associações de municípios de direito público, quer se trate de Comunidades Intermunicipais, quer das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto. O objectivo, segundo o Documento Verde, é valorizar estas formas de associativismo autárquico, designadamente estabelecendo-lhes um quadro alargado de atribuições e competências. Chega-se mesmo a defender o aprofundamento da legitimidade e do controlo democrático das Comunidades Intermunicipais e das Áreas Metropolitanas” – o que teria como corolário lógico a regionalização…
Não nos iludamos, porém: para o governo, o aprofundamento da legitimidade e do controlo democrático não passa pela eleição directa dos órgãos que vão gerir estas comunidades. Estes continuarão a ser um mero fórum intermunicipal, onde cada autarca pensa sobretudo no seu quintal e ninguém está legitimado e responsabilizado para assumir uma visão integradora do desenvolvimento regional.
Miguel Relvas retoma agora o seu projecto: tornar as CIM e as Áreas Metropolitanas inócuas, mantendo o controlo governamental das CCDR’s que substituem com vantagem os governos civis. Quando era Secretário de Estado da Administração Local de Durão Barroso, afirmou que as CIM representavam “o enterro definitivo da regionalização”. Sobre o caos administrativo, reinaria o centralismo. O objectivo mantém-se, a linguagem parece hoje mais refinada.
No combate à estratégia centralizadora e na antidemocrática da direita, com a cumplicidade do PS, temos a noção clara que a onda populista contra a regionalização se reforçou, até com o “buraco da Madeira”. Esta reforma não está na ordem do dia, mas não devemos abandoná-la como peça essencial de uma reforma administrativa coerente e imperativo constitucional.
A demagogia sobre o aprofundamento da legitimidade e do controlo democrático” pode abrir algumas brechas a explorar, em particular nas Áreas Metropolitanas que há muito anseiam pela sua eleição directa. Essa possibilidade, ainda que remota no actual quadro político actual, criaria um precedente incontornável para o avanço da regionalização.

Eixo 4 – Democracia Local
Este é a questão mais controversa, face à qual necessitamos de orientações políticas claras.
Temos claro que o acordo PS-PSD para a alteração da lei eleitoral autárquica não representa nenhum tipo de aprofundamento da democracia local, ao contrário do que título deste eixo sugere. O objectivo é o reforço do bipartidarismo e a imposição de executivos monocolores, reduzindo a drasticamente a proporcionalidade e o número de eleitos.
As motivações são políticas e não meramente economicistas: a “poupança” com as senhas de presença de vereadores sem pelouro e nas reuniões das assembleias municipais é irrelevante. É o mesmo tipo de argumentação utilizada para defender a redução do número de deputados. E a alteração da lei eleitoral autárquica poderá servir de balão de ensaio para o parlamento.
A alteração do sistema de Governo Local é a pedra de toque da proposta PS-PSD, propondo-se a designação indirecta do órgão executivo dos municípios, por indicação do seu Presidente, o primeiro candidato da lista mais votada para a Assembleia Municipal.
Esta proposta rompe com a tradição colegial portuguesa pós 25 de Abril e concentra poderes excessivos na figura do Presidente de Câmara Municipal. Reforça o presidencialismo e estende a fulanização das eleições autárquicas à Assembleia Municipal, até hoje o órgão mais político e plural do município, a quem compete a fiscalização do executivo camarário.
O afastamento dos vereadores da oposição, normalmente sem pelouro, fomentará ainda mais opacidade do processo decisório, já que o órgão deliberativo reúne espaçadamente e os seus membros não têm tempo nem condições profissionais para fiscalizar o executivo.
Assim, não passam de votos piedosos (e hipócritas) as passagens do Documento Verde que pregam “ o reforço dos poderes de fiscalização da Assembleia Municipal sobre o Executivo” e ponderam “um reajustamento das actuais competências das Instituições Autárquicas Municipais, acentuando a importância da Assembleia Municipal enquanto órgão deliberativo”.
No entanto, o Documento é omisso quanto ao carácter electivo dos membros da Câmara Municipal: “Os restantes membros do Órgão Executivo são escolhidos pelo Presidente de entre os membros eleitos para a Assembleia Municipal”. Não prevê, por exemplo a possibilidade da sua demissão pela Assembleia Municipal.
Chegados a este ponto, temos de optar entre duas tácticas possíveis quanto às propostas de lei eleitoral autárquica.
1 – Ou defendemos a manutenção do actual sistema, com eleição directa e proporcional dos membros da Câmara Municipal, conservando o carácter plural e colegial do executivo.
Esta posição não nos inibe de apresentar propostas de reforço efectivo dos poderes de fiscalização e de iniciativa legislativa da Assembleia Municipal, nomeadamente ao nível das consequências das moções de censura ao executivo e do chumbo sucessivo das propostas de plano de actividades e orçamento que poderiam, no limite, conduzir à dissolução da Câmara e da própria Assembleia e à realização de eleições autárquicas antecipadas.
A nível legislativo, poderiam ser tomadas múltiplas iniciativas que nos escusamos de detalhar. No entanto, manter-se-ia o essencial do actual sistema e o seu cerne: a dupla legitimidade democrática da Câmara e da Assembleia Municipal, por vezes conflituante e cuja destrinça não é facilmente dirimida por via legislativa, pois é um problema essencialmente político.
Esta táctica, repetimos, mantém o essencial do sistema autárquico vigente desde há 35 anos e confunde-se com a do PCP, embora nos possamos distinguir ao nível do reforço dos poderes das Assembleias Municipais. Tem o sério risco de nos arredar do debate político, catalogados de “conservadores” e com pouca margem de manobra para a discussão na especialidade.
2 – Ou “damos a volta” à proposta de eleição de um único órgão municipal que, repetimos, visa o reforço do presidencialismo, defendendo a parlamentarização radical da vida municipal:
- A Câmara será eleita no seio da Assembleia Municipal e não terá obrigatoriamente como Presidente o primeiro candidato da lista mais votada, mas sim quem apresentar uma lista que reúna a maioria dos votos no seio do órgão deliberativo – para quem gosta de usar “paralelos” com a Assembleia da República, eis uma possibilidade interessante, quando o líder do partido mais votado não consegue formar uma coligação maioritária.
- Esta alteração fere de morte o presidencialismo: não só desaparece a dupla legitimidade democrática da Câmara e da Assembleia como, obviamente, a Câmara poderá cair por efeito de moções de censura ou da rejeição do plano e orçamento. E sem necessidade de eleições antecipadas enquanto não se esgotarem os arranjos políticos na Assembleia Municipal.
- Fica afastado o fantasma dos executivos monocolores (em muitos casos serão de coligação), a menos que haja maioria absoluta; mas esta seria uma decorrência da própria democracia.
- Num sistema de parlamentarismo municipal não há lugar para os Presidentes de Junta na Assembleia Municipal. Esta presença fazia algum sentido no sistema actual, já que a maior parte do orçamento das freguesias é constituído através de protocolos com os municípios e a AM é o fórum onde estas podiam fazer valer os seus interesses. Mas tem um lado perverso: assistimos a Presidentes de Junta ´”de chapéu na mão” perante o Presidente da Câmara ou a favorecimentos espúrios, a troco de votos que distorcem a proporcionalidade do voto popular. A saída dos Presidentes de Junta da AM seria compensada pelo aumento do número de eleitos directos – de 3 para 5 vezes o número de membros do Executivo, como aconteceu até 1984.
- Para as Freguesias, a solução é o aumento radical dos míseros 0,13% que representam na despesa, tornando-as verdadeiras autarquias, sem dependerem dos orçamentos municipais. Além da necessária descentralização de competências e meios, as parcas receitas próprias das freguesias impõem que o essencial do seu financiamento venha do OE.
- A propósito, esta alteração do sistema eleitoral deve aplicar-se também às freguesias. Grande parte dos impasses na formação das Juntas deriva de, actualmente, só o cabeça da lista mais votada poder apresentar propostas de executivos, por vezes chumbados sucessivamente.
Por fim, não nos iludamos: por melhores que sejam as nossas propostas, o rolo compressor dos partidos da troika tentará impor a sua vontade no parlamento. Mas temos ir à luta e temos de contar no debate público que durará, no mínimo, até ao segundo trimestre de 2012.

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